Introdução
Este breve artigo apresenta considerações iniciais sobre o naufrágio do HMS Thetis (doravante chamado de Thetis), ocorrido na costa brasileira em 1830.
Uma série de estudos sobre o navio, seu naufrágio e principalmente sobre o resgate de sua preciosa carga já foram desenvolvidos e serão aqui comentados.
Sob o ponto de vista numismático, o naufrágio pode ser interpretado como evidência bastante importante sobre a circulação de moedas estrangeiras na costa brasileira na primeira metade do século XIX, e as possíveis implicações deste evento para a numismática brasileira são discutidos de forma pioneira.
Contexto Histórico
Com o fim das Guerras Napoleônicas, a Europa entra em um período bastante tranquilo, com a transformação do Império Britânico na maior potência bélica do mundo e sem nenhum oponente sério para desafiá-la.
Essa supremacia se denominará Pax Britannica, com a Marinha Britânica exercendo um papel fundamental no controle de todas as rotas marítimas comerciais do mundo.
A Pax Britannica se fará notar de sobremaneira na América do Sul. Os laços históricos entre Portugal e a Grã-Bretanha se materializaram na escolta, pela Marinha Britânica, durante a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil em 1808 e pelo forte controle inglês do Porto de Buenos Aires, alvo de seguidas tentativas de invasão pelos ingleses desde o início do Século XIX.
Com um mundo muito maior para patrulhar e controlar, e com uma extensão muito maior de águas a se percorrer rotineiramente, também houve necessidade de modernização das técnicas de navegação, com sistemas mais precisos de localização e comunicação entre os navios da frota.
Já na segunda metade do Século XIX, os avanços tecnológicos promovidos pela Revolução Industrial na Inglaterra se faziam sentir na modernização da Marinha Britânica, com a substituição de embarcações movidas à vela por embarcações movidas à vapor.
O Navio
Construído na década de 1810 e enviado para a América do Sul em 1826, o HMS Thetis era um navio coletor de impostos totalmente movido a vela, com três mastros principais, com 46 metros de comprimento por 12 de largura.
Dada a sua função de coleta de impostos e consequente natureza da sua carga, o Thetis era um navio fortemente armado, contando com vinte e oito canhões de 18 libras em seu convés de canhão, quatorze caronadas de 32 libras em seu tombadilho e um par de canhões de 9 libras e mais duas caronadas de 32 libras no castelo de proa, além de uma tripulação de 315 pessoas1.
Importante ressaltar que o Capitão Arthur Bingham assume o comando em junho de 1826 e falece em 19 de Agosto de 1830, sendo substituído pelo Capitão Samuel Burgess em 29 de Novembro de 18301.
O Naufrágio
Em 5 de Dezembro de 1830, proveniente de Buenos Aires, o Thetis naufraga em Cabo Frio. O Naufrágio se dá em águas bastante rasas, em dia de forte tempestade e nevoeiro, com choque do navio contra as pedras do Focinho do Cabo. Para evitar que o navio se despedaçasse totalmente contra as rochas de um elevado e íngreme paredão rochoso, ele é posteriormente rebocado para o Saco dos Ingleses, atualmente denominado Praia dos Ingleses.
Infelizmente, 22 membros da tripulação (7% do total) morrem no naufrágio, fato que denota a violência do choque que ocasionou o naufrágio.
Uma carga valiosíssima, coletada como impostos em Buenos Aires e formada por barras de ouro e prata e cerca de 150.000 moedas de prata5 afunda junto com o navio.
Estimada em 810.000 dólares em valores de época (Haag in Revista Fapesp 2013), esta soma corresponderia hoje a 27 milhões de dólares3, cerca de R$ 135 milhões considerando-se um câmbio de R$5,00 por dólar.
Investigações posteriores indicam que o naufrágio se deu por um erro de navegação, e é importante se ressaltar que o Capitão Samuel Burgess, considerado culpado em corte marcial pelo acidente, assumiu o navio apenas seis dias antes do naufrágio.
A repercussão do Naufrágio
O naufrágio do Thetis foi um duro golpe na moral da Marinha Inglesa e da sociedade Inglesa, provocando uma série de questionamentos sobre os avanços científicos da época e sobre a capacidade da Marinha Inglesa em gerenciar sua frota remotamente.
(Haag in Revista Fapesp 2013) assim coloca:
“Para Moore, era um caso que levantava questões importantes sobre o desenvolvimento da ciência. No desastre, não se perdia apenas o tesouro, mas a crença no funcionamento da rede imperial inglesa, vista como infalível, e se colocava em xeque a capacidade dos ingleses de agir a distância. Era urgente descobrir o que acontecera e a ciência foi chamada a intervir, para entender as causas do naufrágio e, depois, recuperar a fortuna enterrada no fundo do mar.”
O resgate do Naufrágio
Uma grande força tarefa foi criada para o resgate da carga do Thetis, matemáticos, engenheiros e vários cientistas se envolveram com a questão, que se tornou um assunto muito importante dentro da Royal Society em Londres.
Muito mais que se resgatar o valor material perdido no naufrágio, a questão se converteu em resgatar o orgulho da Marinha Britânica. Um forte aparato de engenharia foi criado, transportado e instalado no local. Em uma época sem combustíveis fósseis e nem eletricidade, equipamentos de mergulho e guindastes especiais, além de rampas de carga e compressores de ar são concebidos, construídos e desenhados para a complexa empreitada.
Um sino de mergulho, com impermeabilização de alcatrão e tochas para iluminação permitiu as atividades subaquáticas, que acabaram por ceifar a vida de algumas pessoas envolvidas nas atividades de resgate.
As atividades são realizadas com bastante sucesso, recuperando 15/16 avos da carga, sendo encerradas em 1832.
Para que tenhamos uma ideia das dificuldade enfrentadas pelos ingleses e seu o nível de desconhecimento das condições locais (especialmente da fauna), recorramos novamente a Haag in Revista Fapesp 2013:
“O capitão conta que passou muitas dificuldades por causa da natureza terrível do trabalho, a insalubridade do clima, dos ataques de insetos, da exposição ao tempo nas cabanas de sapé, e pelos perigos dos mergulhos no mar, uma combinação de terrores que o autor está convencido de que só poderiam ser superados por marinheiros ingleses”, conta o sumário da instituição britânica. Dickinson narra ainda que marujos teriam visto “cinco tigres na praia”. Armados com rifles, os ingleses atiraram nas sombras e verificaram que se tratava de sea-pigs, capivaras”.
Ainda que uma série de novas tecnologias inéditas no mundo estivesse sendo desenvolvida e empregada no Brasil, não houve nenhum mecanismo de intercâmbio com a comunidade científica brasileira. Já no século XXI, entusiastas de mergulho e pesquisadores brasileiros recriaram digitalmente o que seriam os aparatos utilizados4.
Permanecem no paredão rochoso da Praia dos Ingleses em Cabo Frio alguns dos ganchos de fixação dos cabos utilizados para movimentação dos sinos de mergulho e içamento das cargas do Thetis. Não existe no local qualquer informação disponível aos visitantes que mencione o naufrágio e nem tampouco a operação de resgate efetuada no local, que pode ser considerada como uma das maiores iniciativas científicas, de engenharia e tecnológica de sua época.
As Moedas do Thetis e a Importância do naufrágio para a Numismática Brasileira
Apesar dos esforços de resgate bem-sucedidos, moedas provenientes do naufrágio Thetis foram resgatadas posteriormente e periodicamente aparecem no mercado internacional.
Ao longo de mais de 15 anos de observação de mercado, o autor identificou apenas duas moedas desse naufrágio sendo leiloadas, e ambas as moedas apresentam corrosão típica de exposição à água do mar.
A atribuição dessas moedas ao naufrágio é feita através de documentação limitada. Uma delas apresenta o certificado de autenticidade fornecido pelo vendedor5 e a outra apresenta uma etiqueta e envelope de coleção bastante antigos (final do século XIX – Sedwick 2020, imagem do envelope não disponível).
Não existem moedas encontradas com comprovado contexto arqueológico, nunca tendo sido realizadas buscas sistematizadas e com metodologia arqueológica ao local do naufrágio.
Desde a chegada dos portugueses ao território brasileiro, nunca houve produção significativa de prata. Desde o século XVI, o meio circulante brasileiro dependia quase que exclusivamente da prata proveniente das colônias espanholas. Mesmo com o fim da União Ibérica em 1640, este fluxo não foi interrompido.
Apesar das moedas encontradas posteriormente aos esforços de resgate no Thetis serem moedas comuns, algumas considerações importantes sobre sua circulação são documentadas.
Uma moeda de cunhada em Potosi em 1808 (ainda sobre domínio espanhol) estava em plena circulação 22 anos depois de sua produção e chegou até Buenos Aires, onde foi utilizada para pagamento de impostos aos ingleses. Junto com ela, uma moeda de 1827, também cunhada em Potosi, mas já posteriormente a Proclamação da República Boliviana, serviu para a mesma função. Podemos concluir, portanto, que ainda que os processos de independência dos países sul-americanos estivessem em marcha, as moedas de prata continuavam circulando dentro das rotas vigentes desde a época colonial.
A carga de 150.000 moedas de prata do naufrágio do Thetis é muito importante, pois trata-se de uma das raras evidências materiais (senão a única) de transporte de grandes quantidades de moedas de prata, vindas de Potosi, através de Buenos Aires, pela costa brasileira no século XIX.
Ainda que as duas moedas encontradas posteriormente e registradas neste artigo careçam de contexto arqueológico completo, e que não seja conhecido em profundidade o material resgatado em 1832, o naufrágio é muito relevante para a numismática brasileira.
Apesar de ter ocorrido em 1830, quando a produção de 960 réis através de recunhagem de outras moedas se encontrasse interrompida, o naufrágio do Thetis se constitui em uma evidência material importante sobre como as moedas utilizadas para a cunhagem dos 960 réis pudessem chegar ao Brasil em grandes quantidades.
Para confirmação desta hipótese, maiores dados sobre a quantidade de moedas coletadas em Buenos Aires, dados sobre a frequência de coleta e comprovação da destinação final destas no Rio de Janeiro, são necessários.
A evidência material das moedas do Thetis não elimina, absolutamente, a existência de outras formas e rotas de chegada das moedas base de 960 réis ao Brasil.
A carimbagem de moedas de 8 reales no século XIX (Carimbos de Cuiabá e Mato Grosso), em regiões distantes do litoral brasileiro, bem como a existência de moedas bases metropolitanas espanholas ou proveniente de outros países (Estados Unidos, Índia e Áustria, entre outros) aponta para a existência de rotas múltiplas.
Agradecimentos
Este trabalho foi apresentado originalmente em forma de Palestra durante o 1º. Encontro de Numismática e Multicolecionismo de Cabo Frio/RJ, em 02 de Junho de 2023.O autor agradece ao numismata Felipe Rocha pelo convite para palestrar no evento e ao Clube Numismático de Teresópolis pelo apoio logístico para que a palestra pudesse ser realizada.
Para citar esse texto:
LÚCIO, Hilton Aparecido Magri. A importância tecnológica e numismática do resgate do naufrágio do HMS THETIS (1830). Movimento Numismático, Rio de Janeiro - Manaus, Anno.1 - Edição 01, p.10-20, 2023.
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Bibliografia
1- Wikipedia - https://en.wikipedia.org/wiki/HMS_Thetis_%281817%29, acessado em 07/09/2023
2- Revista Fapesp - https://revistapesquisa.fapesp.br/o-imperio-no-fundo-do-mar/ acessado em 07/09/2023. Haag, Carlos. O Império no Fundo do Mar. Revista FAPESP Edição 209 (2013)
3- Conversão - https://www.in2013dollars.com/us/inflation/1830?amount=810000, acessado em 07/09/2023
4 - Naufrágios do Brasil - https://www.naufragiosdobrasil.com.br/especialthetis.htm, acessado em 07/09/2023
5 - Sedwick 2008 - https://issuu.com/sedwickcoins/docs/_ta_3__may_2008 acessado em 07/09/2023
6 - Sedwick 2020 - https://issuu.com/sedwickcoins/docs/sedwick_auction20 acessado em 07/09/2023
7 - MultiRio - https://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/rio_da_prata.html, acessado em 07/09/2023
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